O Descarte do Passado e o Culto ao Novo
A velocidade de renovação das tecnologias e do compartilhar de informações é cada vez maior. A cada segundo mais e mais novidades são colocadas à disposição das pessoas, criando novas oportunidades, novas formas de ver o mundo, a vida e as relações.
Até metade do século passado, quando o ritmo acelerou de vez, o homem percebia a novidade com felicidade, contudo valorizava muito a experiência, a sabedoria e a grandeza do passado enquanto reconhecimento de um tempo que nos trouxe até aqui.
Com a industrialização e o boom da ciência e tecnologia, passamos a perceber o passado de forma diferente. Nunca foram tão citadas palavras como renovação, transformação, metamorfose, superação. É como se aos poucos fossemos trazendo todo o valor, a apreciação e a carga de expectativas, antes postas sobre o passado, e os colocássemos no futuro. O que havia antes não serve mais, está ultrapassado, velho, não tem mais utilidade. Não tem mais valor, ou perdeu seu valor em função do novo. Como aquela velha casa de madeira, que seus avós levaram uma vida inteira trabalhando para conseguir construir, símbolo de suor, conquista e luta e que hoje, após eles falecerem, você olha e pensa: “um amontoado de madeira velho e sem serventia.”
É claro que a novidade nos instiga e motiva. Um novo desafio, uma nova invenção, um relacionamento novo, uma situação nova. Algo novo colore a vida, nos faz depositar energia renovada a fim de que se concretize.
No entanto, o que já passou nos traz segurança, certeza. É o que já sabemos que funciona, o que foi testado e aprovado, o que acumulamos de experiência e conclusões. O futuro é sempre incerto, por mais que se façam planos e arranjos. Mas aquilo que já foi, aquilo que você já conquistou é um tijolo firmemente assentado na base de sua construção.
Se formos pensar em termos de consumo, aquele agasalho que você possui há 20 anos, que ainda aquece, certamente está velho. Provavelmente mais de uma pessoa já disse a você que está na hora de comprar um novo. Que doe o velho e compre um novo, daquele tecido mais eficiente, impermeável, que aquece mais.
Mas o novo é sempre melhor? É possível, ou mesmo ético, descartar o passado sumariamente? Existem aspectos do passado que merecem ser preservados? Quais? De que forma? Precisamos mesmo do novo?
Já falei aqui (Facilitando a Vida?)sobre as facilidades que foram geradas. O suco na caixinha é mais prático, mas realmente é equivalente ao suco natural? Estamos falando de uma novidade que realmente supera o seu antecessor? Ou o “suco” da caixinha não está na mesma categoria de um suco de fruta?
Na área jurídica sentimos, hoje, de forma mais flagrante este movimento de descarte do passado e apreciação do futuro. A sociedade alega ser o Dir
eito atrasado em relação à sociedade e a legislação ultrapassada. Na mesma medida em que buscam-se novas leis, novas penas, novas medidas jurídicas protetivas ou garantidoras. O que há é obsoleto e precisamos de algo novo que “nos represente”. Como se o passado não servisse mais e o futuro incerto fosse o grande responsável por construir aquela sociedade que queremos.
eito atrasado em relação à sociedade e a legislação ultrapassada. Na mesma medida em que buscam-se novas leis, novas penas, novas medidas jurídicas protetivas ou garantidoras. O que há é obsoleto e precisamos de algo novo que “nos represente”. Como se o passado não servisse mais e o futuro incerto fosse o grande responsável por construir aquela sociedade que queremos.
Na faculdade ouvi diversas vezes que o papel do Direito na sociedade é ordenar e garantir segurança jurídica. As leis não são volúveis a todos os ventos sociais justamente porque o Direito representa a vontade do povo quando juntou-se nesta comunidade – no passado original. Também aprendi com os positivistas que as paixões e a moral não fazem parte da Ciência do Direito, a fim de preservar sua racionalidade e pureza, afinal esta ciência é um pilar social de ordem e segurança. Com os humanistas o Direito voltou a buscar na experiência social e no mundo real uma certa legitimidade. Se a lei não está baseada na vida social e se o povo a quem ela se destina não identifica nela um reflexo de seus valores, esta acaba por ser inócua. Como se percebe, mesmo as ciências vão progredindo, a mudança atinge alguns pontos, mas a essência da Ciência, sua função social parece permanecer intacta – ordem, segurança, justiça.
Observando essa tensão que há entre a sociedade da mudança instantânea – que cultua o novo – e o Direito, que representa (ou deveria representar) aqueles valores que elegemos enquanto os mais caros a esta sociedade, poderíamos nos questionar: o Direito está mesmo atrasado? Obsoleto? Há necessidade de novas leis? Novas penas?
Percebo que há um grande desrespeito pelo passado neste momento. Em função disso, o número de processos judiciais tem aumentado cada vez mais. A lei, enquanto reconhecimento do passado, não é mais suficiente. Creditasse ao Juiz, desta forma, o poder de dizer o Direito para o futuro. As emoções do momento exigem novas posturas improvisadas do Estado. E quando este improviso se concretiza, novos interesses já nasceram.
Talvez a sociedade não possua ainda maturidade para perceber as consequências de seus atos. É como se o Direito, enquanto instrumento valioso de coesão e organização social, se tornasse um mero “expediente” – um meio esperto de conseguir as coisas de forma rápida e irresponsável.
Triste para quem conhece e aprecia a ciência complexa do Direito. Contudo, os momentos de crise servem justamente ao requestionamento: será o passado tão desprezível assim? Aquilo que temos realmente não serve mais? O novo substitui de forma completa o velho ou teremos um imenso vazio? Devemos nos deixar levar pelas paixões instantâneas ou a prudência (que os gregos já exaltavam milênios atrás) é o mais adequado? O facilmente substituível é mais adequado do que o durável? Para quem? Para quantos?
Como dizia o meu avô quando não achava prudente interferir: isso tu pode saber! Mais tarde meu sogro também me disse isso algumas vezes. É neste momento que percebemos o nosso quinhão de responsabilidade e adquirimos coragem para agir com maturidade.
Mais do que isso, cada um de nós precisa saber o que pretende deste Estado (a representação da nossa vontade de criar uma comunidade organizada) e deste Direito (a forma de ordem, segurança e justiça que escolhemos a fim de manter este Estado vivo).
Leviatã de Thomas Hobbes |
Um Estado-Nação só se sustenta (é sustentável) na medida em que a vontade do povo é reafirmada e legitimada. O Direito
só se sustenta como ciência enquanto estiver baseado nesta vontade e possuir bases e critérios que permitam que paixões e interesses setoriais sejam adequadamente processados.
só se sustenta como ciência enquanto estiver baseado nesta vontade e possuir bases e critérios que permitam que paixões e interesses setoriais sejam adequadamente processados.